segunda-feira, junho 19, 2006

Não consigo precisar se a tarde ainda corria curta ou já se esticava para as horas do jantar, ou possivelmente o sol se havia retirado das ruas, cedendo-as aos vultos nocturnos, apenas tenho a certeza do agrado por chegar a casa, de estar cansado de mais uma luta pelo pão nosso de cada dia, e de como a familiaridade da penumbra que de ter alcançado o refugio retemperava parcialmente tanto as minhas forças e o meu ânimo. Talvez cansado seja um adjectivo excessivo, porque verdadeiramente cansado não estava, apenas o corpo moído do lufa-lufa, do percorrer quilómetros ininterruptos sem que eles, entre cada chegada e partida, expliquem a distância que se palmilhou, sempre entra e sai, volta aqui anda cá pois ainda preciso de ti, aqui e ali, mas afinal é noutro sitio, e vai lá outra vez, não te atrases, não te esqueças, o trabalho não foge, o que tens para fazer não azeda mas por favor acode à minha aflição, primeiro os primeiros e antes de todos os outros eu, salva o meu microcosmos de colapsar no buraco negro da minha própria ignorância, enfim, não estava fisicamente esgotado, mas bastante moido e farto de bater as asas fora do ninho.

Atravessei a barreira que permeia a minha vida de cidadão anónimo e o meu mundo privado, e assaltou-me a impressão de que as paredes se encontram dispostas ao contrário do habitual, como se uma entidade superior tivesse arrancado a casa pelas fundações, e após lhe esticar as entranhas, lhe remodelado o interior, lhe tivesse invertido dentro e fora, e replantado os seus quatro cantos de modo a que, intencionalmente, estes que coincidissem com os pontos cardeais diametricamente opostos aos descrtitos no registo predial. Lembro-me claramente de reparar em como estranhei o facto de que a porta do meu quarto se havia modificado signitivamente, o branco acrilico exemplarmente espalhado na porta estava envelhecido, estava podre e gasto, com grandes falhas nas camadas de tinta desnudando a madeira, uma consequência irrefutável do excesso de humidade e de uma inegável ausência de zelo, assim como me lembro-me de anotar mentalmente que isso conferia ao corredor um ar indigente e desmazelado. No entanto o corredor não se encontrava desarrumado, muito pelo contrário, sendo destrinçável pela essência de jasmim que o soalho de madeira fora limpo recentemente. O que também me surpreendeu foi pisar o chão duro, sensação que contrariava o já familiar toque almofadado da alcatifa caqui.

Desprezando o instinto que gritava "irrealidade" sigo para a cozinha, e encontro-te esperando-me sentado num banco, costas encostadas à mesa, sorriso amável e bondade contagiante, tronco nu peludo, calções castanhos, sandália no pé, cerveja na mão, e alegria por eu finalmente chegar. Sei que não és tu, que não estás ali, que és um espirito que me visita, e mesmo ciente da diferença da nossa natureza existencial estou feliz por te ver. Batemos as palmas, como dois jogadores que celebram um golo, e ofereces-me uma garrafa de cerveja. Eleva-mos as duas garrafas ao nível dos olhos, tocando as bases das garrafas num brinde, cada qual emborca o seu refresco alcoólico, segue-se o ritual de arrotos e risos. Com a tua mão aberta bates-me nas costas e entoas como um pregão "Ó Costa" porque sabes como detesto ser tratado desse modo, seguido de um "Tá-se??!". Sento-me no outro lado da mesa, e a conversa flui. Conto-te as minhas últimas estórias e os últimos segredos dos outros, detalho-te paranóias recentes e rimo-nos com as minhas boçalidades. A cerveja acaba, não bebemos outra.

De repente a temperatura cai, as cores alteram-se. Tu desapareces. Eu sozinho, sem palavras, atordoado. Atónico encaro dois guarda-sois que, como lanças, me tentam perfurar, que me expulsam da mesa, que querem expulsar da casa. Confuso penso Não és tu, É um espirito mau, sádico, ardiloso e mal intensionado, Possivelmente algum antepassado do dono da casa oitocentista que regressa ocasionalmente, para destilar o seu ódio e atormentar as almas dos ainda vivos. Encostado contra a parede, estupidificado com medo, sentindo as estocadas contudentes decididas a me separarem as costelas, sem fuga possivel, decido acordar.

Sentei-me na cama, o lençol cobrindo-me as pernas, fixo o nada que se interpõe entre mim e a parede, onde se projecta a luz do candeiro que que alumia a rua, tentando destrinçar o pesadelo da oferta da amizade.

Dias depois compreendi que havia visitado uma mansão antiga, em que possivelmente irei também repousar um dia. Mas por ora a minha condição de visita só me permite um salvo-conduto de curta duração, terminado o qual não devo insistir em me demorar.



Que coisa é aquela,
Está na praia e é amarela?
É a tenda dos Merdas!

Não rapes a barba, não cortes o cabelo!
Olha que a Dona Jaciana dá-te cabo do pêlo.
Jaciana da Merda!

Tu queres uma coca-cola?
Eu quero uma coca-cola.
Tu queres um ginger ale?
Eu quero um ginger ale!
Mas não me chames Teddy Boy!
Mas não me chames Teddy Boy!

Cagalhões a saltar, rabanetes a voar!
Só na tenda dos Merdas!

Que coisa é aquela
Que está na praia e é amarela?


1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado.

(isto era só o que eu queria dizer, mas pa ninguém pensar que eu tenha feito confusão: obrigado por estares entre nós, enchendo os espaços entre os nossos espiritos e tantas vezes a tua presença amortecer os choques que sempre ocorrem quando dois espiritos diferentes se esquecem que teem almas parecidas. sempre tiveste essa mania de ocupar o espaço todo, gordo! :p)