segunda-feira, agosto 24, 2009

Relato de Viagem nº 7

Querido Peregrinário deixo o relato da minha sétima aventura em terras Galegas, que vivi na companhia do peregrino João Miguel.

Dia 0 - despedidas & viagem

O dia amanheceu cedo, quente e luminoso pelas terras de São Jacinto, onde estávamos acampados com o Agrupamento de Olivais Sul. Acordamos à hora da alvorada porque o cansaço acumulado desses dias, e as horas de sono em falta a tal nos obrigaram. Por nossa vontade teríamos nos levantado um pouco mais cedo, para aproveitar ao máximo o dia, mas, nesta vida, nem sempre o corpo consegue corresponder aos devaneios da mente. Com banho tomado e barriga cheia com o pequeno almoço despedimo-nos de todos a preceito e fomos com as nossas mochilas até ao carro. Arrumamos novamente tudo o que tínhamos a arrumar e preparamo-nos para uma viagem interessante para Norte, para além da fronteira luso-galega. Seriam cerca das dez da manhã quando saímos, possivelmente até um pouco mais cedo. A viagem foi suave, e parámos somente uma vez nas estações de serviço Portuguesas.

Na Galiza saímos da autoestrada, para evitar as portagens, e aproveitamos a estrada nacional 550 para melhor ver as paisagens que acompanham o Caminho Português. As colinas e montanhas, os rios e as florestas rebuscaram recordações de cinco anos atrás, quando pela primeira vez nos aventuramos a pé, desde Valença a Compostela.

Chegados a Santiago deixamos o carro estacionado perto da gare dos autocarros, e apanhamos o autocarro das quatro horas para Lugo (oito euros cada bilhete... ui, até doeu...), onde chegamos após mais hora e meia de viagem.

A estadia na cidade de Lugo foi deslumbrante, embora extremamente curta. A estação de autocarro era um pouco afastada do casco histórico de Lugo, por isso a primeira impressão que tive foi negativa, pois Lugo, pelas janelas do autocarro parecia-me uma cidade vulgar, cheia de casas e apartamentos banais espalhados pelas colinas e estendendo-se até às margens do rio, sem capacidade de me despertar interesse especial. Fiquei de boca aberta com a surpresa que me estava reservada. O centro de Lugo está contido numa muralha romana com cerca de dois mil anos. Óbidos e Monsaraz podem ter a sua mística e destaque entre as localidades lusitanas, pois estão harmoniosamente encrostadas entre as paredes protectoras dos seus castelos, mas não passam de pequenas pérolas quando comparadas com esta preciosidade que remonta aos tempos do Império.

O albergue estava lotado, portanto orientamos alojamento perto de uma das doze portas da muralha, onde descansamos e recuperamos forças para a caminhada.


Dia 1 – de Lugo a Melide

A noite foi vivida oscilando entre o sono profundo, fruto do cansaço de uma semana de escutismo e de seiscentos quilómetros de viagem misturado com meia garrafa de vinho morangueiro ao jantar, e da ansiedade repleta de sonhos irrequietos, quase pesadelos, onde virgens meio loucas, inseguras e fogosas nos atacam com beijos quentes e apaixonados, sedentos de amor, áridos de projectos e desertos de sensatez. Acordei assustado, confuso, certo de ter trocado os fusíveis da libido e do terror durante a noite, pois o que quase era um sonho erótico, caso se tivesse desenrolado adequadamente, arrancou-me ao sono como um shot de adrenalina, bastante antes da hora e não consegui voltar a pregar olho. Aprendi que a nunca mais pensar em quem não se pensa especialmente antes de ir dormir, para evitar acordar irritado e ressentido por desperdiçar tempo em quem não desejo pensar.

Saímos do hostal por volta das seis e meia da manhã. O sol ainda não havia nascido, e nas ruas jovens a adolescentes bebiam, trepavam e saltavam as muralhas. Encontramos o caminho e seguimos entre árvores e urtigas pelos baldios da cidade enquanto esperávamos a luz do dia. Rapidamente chegamos aos limites de Lugo, e para não tomarmos o caminho errado logo ao inicio, solicitamos à primeira pessoa que encontramos que nos indicasse a direcção de Santiago, e assim seguimos caminho, procurando atentos um local acolhedor onde tomar o desayuno.

Saímos de Lugo atravessando a ponte que cobre o rio, e o dia despertou quando caminhávamos seguindo a margem, que abandonámos rapidamente para começarmos a subir as encostas em direcção a Melide. Durante horas palmilhamos estradas e caminhos, e a cada passo percorrido mais desejosos ficávamos de aquecer o estômago com um cafezinho com leite e umas bolachitas. Aldeias e vilas não existiam, só estradas de alcatrão, caminhos de terra batida, colinas verdejantes e vales fecundos. Verde, verde era a aragem fresca que nos alentava debaixo do céu nublado e cinzento, e provia de um tapete estendido sobre a terra por quilómetros e quilómetros em nosso redor, um tapete matizado em tons de verde, ocasionalmente dourado, ocre ou castanho, um teado orgânico elaborado por gerações de camponeses lavrando, semeando, podando, plantando, adubando, colhendo, orando e abençoando o fértil do solo galego.
Infelizmente, para nós, dois caminhantes incautos, tamanha beleza rural significava ausência de actividade humana (exceptuando a agrícola e a pecuária) só avistamos o primeiro café cerca das dez/onze horas, que convenientemente estava fechado para férias, por isso, rendemo-nos ao caminho matamos a fome com pêras verdes, cidras ácidas e amoras silvestres. Caminhamos e caminhamos durante bastante tempo sem avistar outros peregrinos, e só ocasionalmente encontrávamos alguém pelos campos, ou de tempos a tempo um carro passava.

Eram cerca do meio dia, tirando ou pondo meia hora, quando nos cruzamos pela primeira vez com outros peregrinos. Era um grupo pequeno de adolescentes que também haviam saído de Lugo nesse dia, e que iriam pernoitar em São Pedro da Retorna (ou como raios se chama a terra). Nós havíamos planeado a pernoita em Palas de Reis, a 35km do ponto de partida, e como apenas faltavam 15km (e um pequeno almoço condigno) decidimos continuar a andar. É sempre um erro caminhar sem mapa, especialmente quando seguimos indicações que não nos conduzem onde julgamos nos dirigir, e descobrimos mais tarde, a custo de muito peregrinar, que Palas de Reis era por um qualquer outro trilho, e que durante 10 km nem uma casa avistariamos.

Já eram três horas da tarde quando encontramos o marco dos 66km pintado com um Arco-íris. Logo em frente um casebre humilde tinha uma bandeira colorida gritando Pace hasteada. O JM bateu à porta, para pedir água para o seu cantil, e de dentro duas simpáticas raparigas responderam convidando-nos a entrar, comer, beber, descansar, a pernoitar se fosse o nosso desejo, a almoçar ou jantar consoante o nosso apetite, a tocar e cantar, a escrever no livro de visitas. Ficamos a repousar durante hora e meia, enquanto bebemos um cafezinho com leite e canela e cantamos musicas dos xutos, e depois fizemo-nos novamente ao caminho energizados pela cafeina.

Foi bastante agradável chegar a Melide, cercva das seis da tarde. O albergue municipal estava cheio, devido ao afluxo dos muitos turigrinos que fazem o Caminho Francês no verão, e por isso ficamos alojados num pavilhão de congressos.


Dia 2 - de Melide ao Monte do Gozo

Iniciamos o segundo dia com um compromisso não assumido de tentar alcançar o Monte do Gozo, a cinco quilómetros de Santiago. Andámos, andámos, andámos, andámos. A uns 7 quilómetros antes do monte do gozo começaram a aparecer placas indicando a proximidade do mega-albergue com capacidade para 800 pessoas. É incrível como o tempo e a distância são conceitos relativos que se distorcem com o cansaço, e como uma hora de percurso se transforma em duas ou três quando os músculos das pernas e os pés doem, e como duas horas se transformam rapidamente em quatro e a próxima meta não chega, pelo contrário, afasta-se cada vez mais, multiplicando os quilómetros que faltam através de curvas, desvios, subidas, descidas, alcatrão, suor, fatiga, e como infalivelmente uma voz aparece nas nossas cabeças criticando a estupidez de um percurso tão longo, rezando por um sofá acolchoado reservado a peregrinos escondido na próxima esquina, entretendo-te com trivialidades tentando não calcular quanto já andaste ou ainda tens para andar nesse dia, elaborando planos da próxima aventura que obviamente em que tudo será mais sensata, invejando uma tarde em redor de uma piscina com uma cerveja e boas vistas. Os últimos quilómetros antes de chegar à Catedral são sempre os mais desagradáveis, a paisagem torna-se mais urbana, os caminhos asfaltos prolongam-se ininterruptos, as pequenas manadas de vacas, cabras, ovelhas esfumam-se substituídas por manadas de turistas que enriquecem as gentes da terra, aldeamentos para turistas efémeros oferecem cama, pequeno almoço, selo , coca-cola, três pratos ao jantar, num pacote de repouso a preço de conveniência, sebes, árvores, valas, dão lugar a grades, grades, prisões que impedem os curiosos de se aproximarem do aeroporto para que não levem com um avião na cachola, de invadirem a estação de televisão, de entrar pelo parque de campismo abandonado em que já funcionou uma piscina que ainda espicaça a imaginação dos que passam.

Entramos no albergue do Monte do Gozo cerca das sete horas. No balcão da entrada, enquanto efectuava mecanicamente o ritual de carimbar a credencial e registo dos nossos dados, a recepcionista verificando poucos selos registados comentou "Camiñaste pouco, non", respondi "Temos é poucos selos. Começamos a andar em Lugo... Ontem...", o que a fez arregalar os olhos, reparar na data de cada carimbo, bater com o indicador na testa, exclamavar "Vosotros son locos! Isso san muitos quilómetros". "Sim, é verdade, foi uma estupidez, é daquelas asneiras que apenas se fazem uma vez na vida... Nunca mais repetir".


Dia 3 - Santiago de Compostela

Acordamos cerca às nove e pouco, arrumamos as tralhas, e aproveitamos para observar o espaço destinado aos peregrinos. Existe uma zona reservada às tendas, antes do perímetro vedado, e dentro do perímetro dezenas de barracos compridos equipados com cozinha, sanitários e beliches albergam os caminhantes. No centro de tudo existem os restaurantes para os vários bolsos, as máquinas de café, os bares, e mais algumas lojecas que não perdemos tempo a cuscar porque, afinal de contas, ainda estávamos em peregrinação.

Demoramos cerca de uma hora a chegar à Catedral, e depois foi o roteiro do costume: arranjar um hostal perto da Catedral, para evitar andar carregado com a mochila, carimbar a credencial e obter a Compostela, ir à missa do Peregrino, e passear, passear, passear, para não deixar os músculos arrefecer.