segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Olhando para mim, a janela sentou-se à minha frente. A rua fez uma vénia e apresentou-se, dizendo que naquela noite seria a minha companheira. O relógio foi o meu confessor. O termómetro, discreto, sussurrava-me segredos.

A grande transparência de vidro permitia que o olhar frio da rua me encontrasse. Pela estrada molhada passeavam-se centenas de vidas, que ainda procuram chegar a lugar seguro. Os faróis cadentes cruzavam a noite, transportando-se em realidades paralelas para mim interditas. Nas minhas costas o tempo parava, e estórias sem idade flutuavam numa elipse intemporal, fundindo-se numa amálgama de trivialidades quase esquecidas. Pedaços de vidas dipersos encontravam pedaços de esperança perdidos, um complemento efémero no efusivo encontro. A minha companheira fielmente testemunhou a reconstrucção de puzzles até aí desconhecidos, colagens inocentes a partir de incoerências de memórias colectivas. Depois pintou-me quadros com milhares de cores que desconheço, sussurrou-me confidências e centenas de segredos que jamais conseguirei compreender, surpreendeu-me com novidades em noiticias que eu julgava já conhecer. Longe e distante, o que via pela transparência a mim relatava, adicionando pormenores e profundidades imperceptiveis para mim, pois eu observava demasiado perto.

O tempo ria-se, eu lhe contava o que tinha acabado de aprender, e conforme adicionava o toque da minha própria experiência. A sala enchia-se de doces e estranhos perfumes, enquanto que mil cores de mil arco-irís dançavam delicadamente em harmonia com as vozes daqueles que a janela reflectia. Em todo o tempo foi bom ouvinte, nunca se importando com o com a dimensão da verdade nas estórias em si, nunca ligando à falta, ou excesso, de dimensão das personagens que eu lhe descrevia, nem se importando com a inexistência de coerência narrativas entre situações paradoxalmente distintas e distorcidas, que ocasionalmente salpicava a minha narrativa. Quando às vezes eu parava de falar, e a rua se silenciava, a janela piscava o olho ao tempo, e então este, sorrindo simpático, lá disparava quanto tempo tinha passado desde a última vez em que tinha dito algo: cinco minutos; dez; dois; quase meia noite; já quarenta minutos; hora de ires embora, pois ainda outros terei de ouvir neste dia que subitamente começou. "Ainda antes que o sol assuste a noite, e a expulse para longe das colinas que tanto ama, muitas mais estórias terei de ouvir!"

Também o tempo me fintava, e quanto mais eu contava, menos contava, decrescendo degraus para valores de desconforto considerável. "Vem ter comigo. Eu e a rua a vós esperamos", brandavava constantemente, desafiando coragem e resistência, seguro no seu apelo que inevitavelmente seria respondido. De repente esvazou-se a janela, e esta entristeceu-se; o tempo, sempre sereno, segredou-me que era tempo; a rua abriu-se a nós, dedicou-se toda, de braços, mãos e dedos esticados, amante apaixonada sempre pronta a nos acolher dentro de si; e o tempo, sempre severo para o menos prevenidos, já havia tempo que pacientemente, minuto a minuto, grau a grau, passinho a passinho, nos aguardava.

As ultimas estórias encontrei-as sem o filtro da janela. Encontros rápidos. Estórias curtas. Tendo-se perdido o quorum, tornaram-se tão secretos que nem mesmo as nossas almas foram testemunhas.

Já fora, o namoro com a rua foi rápido. O tempo ciumento nos abraçou, e encaminhou-nos para casa, trazendo-nos de volta à nossa realidade.

3 comentários:

@ndrei@zul disse...

extraordinariamente bom! =)

Anónimo disse...

méne...
as tuas visões não me surpreendem (quer dizer, não me surpreende que as tenhs), porque em ti sei que existe tanto, mas as tuas palavras são elas próprias cor!
(pergunta-me mais, q eu tenho mais a dizer, mas vo-me esquecer :))

CuiShLe disse...

Bonito =)