Olhando para mim, a janela sentou-se à minha frente. A rua fez uma vénia e apresentou-se, dizendo que naquela noite seria a minha companheira. O relógio foi o meu confessor. O termómetro, discreto, sussurrava-me segredos.
A grande transparência de vidro permitia que o olhar frio da rua me encontrasse. Pela estrada molhada passeavam-se centenas de vidas, que ainda procuram chegar a lugar seguro. Os faróis cadentes cruzavam a noite, transportando-se em realidades paralelas para mim interditas. Nas minhas costas o tempo parava, e estórias sem idade flutuavam numa elipse intemporal, fundindo-se numa amálgama de trivialidades quase esquecidas. Pedaços de vidas dipersos encontravam pedaços de esperança perdidos, um complemento efémero no efusivo encontro. A minha companheira fielmente testemunhou a reconstrucção de puzzles até aí desconhecidos, colagens inocentes a partir de incoerências de memórias colectivas. Depois pintou-me quadros com milhares de cores que desconheço, sussurrou-me confidências e centenas de segredos que jamais conseguirei compreender, surpreendeu-me com novidades em noiticias que eu julgava já conhecer. Longe e distante, o que via pela transparência a mim relatava, adicionando pormenores e profundidades imperceptiveis para mim, pois eu observava demasiado perto.
O tempo ria-se, eu lhe contava o que tinha acabado de aprender, e conforme adicionava o toque da minha própria experiência. A sala enchia-se de doces e estranhos perfumes, enquanto que mil cores de mil arco-irís dançavam delicadamente em harmonia com as vozes daqueles que a janela reflectia. Em todo o tempo foi bom ouvinte, nunca se importando com o com a dimensão da verdade nas estórias em si, nunca ligando à falta, ou excesso, de dimensão das personagens que eu lhe descrevia, nem se importando com a inexistência de coerência narrativas entre situações paradoxalmente distintas e distorcidas, que ocasionalmente salpicava a minha narrativa. Quando às vezes eu parava de falar, e a rua se silenciava, a janela piscava o olho ao tempo, e então este, sorrindo simpático, lá disparava quanto tempo tinha passado desde a última vez em que tinha dito algo: cinco minutos; dez; dois; quase meia noite; já quarenta minutos; hora de ires embora, pois ainda outros terei de ouvir neste dia que subitamente começou. "Ainda antes que o sol assuste a noite, e a expulse para longe das colinas que tanto ama, muitas mais estórias terei de ouvir!"
Também o tempo me fintava, e quanto mais eu contava, menos contava, decrescendo degraus para valores de desconforto considerável. "Vem ter comigo. Eu e a rua a vós esperamos", brandavava constantemente, desafiando coragem e resistência, seguro no seu apelo que inevitavelmente seria respondido. De repente esvazou-se a janela, e esta entristeceu-se; o tempo, sempre sereno, segredou-me que era tempo; a rua abriu-se a nós, dedicou-se toda, de braços, mãos e dedos esticados, amante apaixonada sempre pronta a nos acolher dentro de si; e o tempo, sempre severo para o menos prevenidos, já havia tempo que pacientemente, minuto a minuto, grau a grau, passinho a passinho, nos aguardava.
As ultimas estórias encontrei-as sem o filtro da janela. Encontros rápidos. Estórias curtas. Tendo-se perdido o quorum, tornaram-se tão secretos que nem mesmo as nossas almas foram testemunhas.
Já fora, o namoro com a rua foi rápido. O tempo ciumento nos abraçou, e encaminhou-nos para casa, trazendo-nos de volta à nossa realidade.
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3 comentários:
extraordinariamente bom! =)
méne...
as tuas visões não me surpreendem (quer dizer, não me surpreende que as tenhs), porque em ti sei que existe tanto, mas as tuas palavras são elas próprias cor!
(pergunta-me mais, q eu tenho mais a dizer, mas vo-me esquecer :))
Bonito =)
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